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>> Colunistas > Lázaro Freire ! NADA OCORRE POR ACASO - Magia Mental, Jung e Sincronicidades Publicado em: 21 de março de 2009, 20:42:38 - Lido 6759 vez(es) Entrevista Acredite: Nada ocorre por acaso ... São José do Rio Preto, 15 de março de 2009
Revista Bem Estar - Diário da Região Para assumir o controle da própria vida e obter o que deseja por meio da força do pensamento ou da lei da atração, por exemplo, não basta desejar. É preciso mentalizar a realização do que quer com respeito a três níveis da vida: o individual, o coletivo e o divino. Ainda assim ocorrerão fatos que, independentemente da sua vontade, irão mudar o caminho inicialmente traçado. Não tem jeito. Observe. Aliás, é a observação aos pequenos sinais emitidos no decorrer do caminho que pode fazer grande diferença no resultado do que almeja a si. Para explicar melhor como funciona esse processo o psicanalista transpessoal Lázaro Luiz Trindade Freire, que também é terapeuta junguiano e palestrante espiritualista, concedeu entrevista à Bem-Estar. Confira. Bem-Estar - Muito se diz que nada acontece por acaso, que nada é aleatório no mundo. Na sua opinião, até que ponto as pessoas devem confiar no ‘acaso’? Lázaro Luiz Trindade Freire - Em minha opinião, temos aí duas coisas distintas. Uma é observar que há uma interdependência das coisas e que a realidade é muito mais do que aquilo que conhecemos. Outra é a generalização que poderia levar a uma confiança no “acaso” que nos isentaria das ações e consequências. Em minha prática clínica observo que indiscutivelmente há uma natureza simbólica na realidade que se manifesta por meio de coincidências significativas, também conhecidas como sincronicidades, e que também se reflete nos sonhos. Prestar atenção a estes sinais e simbolismos é importantíssimo, mas isso não é um convite a viver de modo aleatório. Muito pelo contrário, entendo que os simbolismos e sinais frequentemente nos pedem uma atitude reparadora, como um convite a retomarmos a direção de nossas vidas. Como em tudo, é necessário discernimento e bom senso. Ignorar a vida subjetiva e simbólica é um equívoco, é viver apenas na superfície, perdendo a possibilidade das realizações de nossos potenciais. Basta ler algumas biografias - não por acaso, um de meus gêneros favoritos - para perceber que todos os grandes homens souberam acreditar em seus sonhos e ler muito bem os sinais que a vida invariavelmente lhes deu. Mas por outro lado, sincronicidades são coincidências significativas, e não qualquer fato aleatório. Há quem pense que até a placa do carro a sua frente é um recado especial de Deus apenas para ele. Menos. Muitas coisas são de fato espirituais, mas a característica principal de nossa vida se dá aqui, no material e no consciente. Pensar que tudo à nossa volta está tentando nos dar recados e ocorre em torno de nossa existência já fica mais próximo de um delírio autorreferente, uma característica de psicose. Podemos muito, mas não podemos tudo, e reside aí um equívoco frequente em co-criação por pensamento positivo e/ou leitura de sincronicidades. Bem-Estar - O autor do livro “Tornar-se como Deus”, Michael Berg, diz que para ir de um ponto A até um ponto B é preciso ter algum plano de como chegar lá, pois assim é possível ter uma visão da melhor linha de ação. Mas quando algo ocorre nesse percurso traçado, quando a ‘vida’ interfere de algum modo nesse caminho, geralmente, há frustrações. Como lidar com isso? Acredita que as pessoas simplesmente devem acreditar que o fato ocorrido não foi por acaso ou analisar que o fato pode ter sido consequência das próprias atitudes do envolvido? Freire - Michael Berg baseia-se nos conhecimentos da cabala, que há muito tempo estuda essas possibilidades simbólicas e de programação existencial. Concordo que o planejamento é essencial quando pretendemos assumir o papel de cocriadores de nossas realidades. Muitas frustrações vem exatamente daí, de desejos que não levam em consideração o contexto, as consequências, os prazos, nem mesmo a exequibilidade (que pode ser feito) daquilo que desejamos pedir a Deus. Não podemos nos esquecer que o mundo não gira ao nosso redor, e que somos cocriadores, ou seja, que todos os demais são tão deuses quanto nós. É preciso que nossas criações respeitem a “ecologia” do mundo em que vivemos, uma vez que este também foi uma criação feita a partir de nossos pensamentos anteriores. Por exemplo, conheço pessoas que tentam mentalizar que o marido lhe dê mais segurança, ou que o pai lhe dê um carro. É um equívoco, pois as ações deveriam ser iniciadas e controladas pelo próprio sujeito. Outros pecam por falta de senso de realidade. Querem um apartamento e focam em um gigantesco no Morumbi, quando na verdade ainda moram numa casa de fundos em um bairro diametralmente oposto. Nosso "subconsciente" (não gosto dessa palavra, mas a uso aqui por fins didáticos) descarta imediatamente a idéia. Ora, se em tese tudo nos é possível, não podemos nos esquecer que foram elas mesmas que cocriaram suas vidas nas condições atuais. Talvez fosse mais sensato planejar primeiro um apartamento decente dentro de seu padrão, e a partir dali pensar em novas realizações. Há também quem planeje coisas para as quais não tem o menor preparo e qualificação, e seria mais prudente subdividir os desejos e objetivos nas etapas anteriores. Outro exemplo, se quero ocupar um cargo que me exige determinada formação, um planejamento adequado deveria desejar esses pré-requisitos primeiro. O equívoco mais comum nos que se revelam frustrados na cocriação de sua realidade é terem projetado apenas o ponto final, sem avaliar o impacto em sua vida e nas pessoas com quem vivem, ou sua falta de preparo para arcar com as consequências e responsabilidades da realização de seus desejos. A esse respeito, há um ditado antigo que diz “cuidado com o que você acabou de pedir, pode ser que anjo escute”. Afinal, não há desejo que não traga consigo uma responsabilidade, a qual nem sempre quem busca atalhos quer assumir. Outra questão que ensino em meus cursos é que há três níveis de “criação”. Bem-Estar - Que níveis são esses? Como funcionam ou atuam? Freire - São os três níveis de “criação”: individual, coletivo e divino. O que podemos construir não é pouco, mas é preciso estarmos sintonizados com todos os outros potenciais criadores em ação no mesmo mundo. Para termos sucesso, aquilo que pretendemos precisa respeitar a nossa vida, os desejos dos outros, a criação coletiva que fazemos enquanto sociedade, e também o plano maior. Costumo comparar com uma criança que faz um castelo na areia. Ela pode fazê-lo do nada, por sua vontade, mas se não considerar os limites de quem está do lado, terá sua ação limitada. Há ainda a criação coletiva. Se o castelo for deixado no meio de um campo de futebol, o interesse da coletividade - jogar bola, por exemplo - fará com que a vontade da criança seja desfeita. E há ainda as leis maiores. Se a criança faz seu castelo na região em que a maré começa a encher, o oceano o destruirá. Com nossas criações, ocorrem coisas similares. Muitas vezes escolhemos e construímos de modo razoavelmente correto, mas contra a maré. Os planos do coletivo ou as leis divinas não vão parar apenas porque fizemos uma mentalização. Para quem planeja assumir o controle da sua vida, recomendo sempre que mentalizem sua realização de modo a respeitar o individual, o coletivo e o divino. E por fim, é preciso nos conhecermos melhor, para que façamos nossas escolhas com consciência. Espiritualidade e psicoterapia podem ser uma ajuda valiosa nesse processo. Afinal, nem sempre nossos primeiros desejos são realmente o melhor para nossa existência. Há um ditado árabe que diz que às vezes, quando tudo dá “errado”, acontecem coisas maravilhosas que jamais seriam possíveis se tudo tivesse “dado certo”. Bem-Estar - Os acontecimentos aleatórios seriam algum tipo de alerta emitido por Deus? Como a pessoa deve avaliar a trajetória inicial junto aos percalços do meio do caminho? Como saber se o “correto” é continuar ou parar com determinada ação ou atitude? Freire - Os acontecimentos aleatórios, não creio. Somos também cocriadores e o mundo tem suas próprias leis. Já as sincronicidades, coincidências particularmente significativas, sinais, estes sim muitas vezes parecem provir de alguma instância maior, que nos transcende e da qual não temos plena consciência. Para não precisarmos entrar nas opções religiosas de cada um, costumamos chamar essa estrutura de “inconsciente”. Este termo, comum da psicologia junguiana, não exclui a participação divina, muito pelo contrário. Mas também não podemos generalizar. Há muito mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa filosofia. Em outras palavras, aquilo que chamamos de inconsciente e que provoca nossos sonhos e sincronicidades recebe a ação de vários fatores, começando pelo nosso próprio psiquismo. Mas das dimensões divinas, também. Quanto a saber o que é o melhor para a sua própria vida e fazer as escolhas mais apropriadas, creio que isso nunca tenhamos receita absoluta e é exatamente esse o desafio de viver. Atendendo em psicanálise transpessoal, noto que as pessoas de mais idade se arrependem muito mais daquilo que não fizeram na vida do que de qualquer atitude certa ou errada que um dia tenham tomado. Parece que estamos aqui justamente para fazer essas escolhas. Quanto a mim, optei pelo caminho do autoconhecimento. Há tempos abdiquei de ser mais um religioso ou mestre espiritual, preferindo ser psicoterapeuta, filósofo, palestrante e escritor - ou seja, também lidando com as dimensões transcendentais da vida, porém com mais enfoque nas perguntas que levam à reflexão do que nas "respostas" e "certezas" que tantos pensam ter. Essa minha própria escolha de vida responde, em parte, o que penso sobre esta pergunta do “caminho correto”. Nunca faltarão mestres, gurus e escritores de autoajuda com novas receitas mágicas sobre o “correto”, mas a própria diversidade dessas receitas "únicas" lança suspeitas sobre sua abrangência. Penso que o caminho é possível, mas começa com um esforço sincero de autoconhecimento, de enxergar os próprios defeitos, mudar atitudes, perceber sinais, compreender os padrões da própria existência, anotar e interpretar os sonhos - enfim, aumentar a integração entre o consciente e o inconsciente, o material e o espiritual, um processo que o psiquiatra e fundador da escola analítica de psicologia, Carl Jung, chamava de “individuação”, exatamente porque só a partir desse ponto podemos nos perceber como indivíduos plenos. A partir deste autoconhecimento podemos e devemos prestar mais atenção nos sinais e padrões. Quanto mais os seguimos, mais eles se multiplicam, a ponto de dar confirmações e nos orientar no sentido da autorrealização: Os deuses das coincidências prestam muita atenção a quem presta atenção n'Eles. Bem-Estar - Como lidar com a dualidade em confiar em Deus, ter fé de que Ele nos ‘dá’ o melhor, com o seguir com os próprios objetivos e planos? Freire - Não vejo dualidade nessa questão. A fé e a confiança em Deus, bem como a consciência de habitarmos um mundo de cocriação coletiva, não faz de nós menos responsáveis pelas nossas atitudes e caminhos. Em outros termos, a fé não é um convite à inércia e passividade. Deus nos orienta, o que é muito diferente de carregar no colo. A sabedoria popular nos diz que “Deus ajuda a quem cedo madruga”, ou seja, ele se faz mais presente à medida em que fazemos a nossa parte. A espiritualidade pode nos ajudar a lidarmos melhor com nossos problemas, mas não irá resolvê-los por nós. Ainda bem. Bem-Estar - O que muda no comportamento de uma pessoa quando ela passa por um momento de tristeza profundo, diante de perdas ou grandes frustrações? Nesse período, qual a importância de confiar ou não em Deus, ou em algo superior? Freire - Confiar em algo superior é fundamental e podemos dizer que é uma característica intuitiva inata do ser humano e não apenas um traço cultural. Afinal, em todas as épocas, regiões e culturas o homem sempre manifestou alguma forma de culto transcendente, naturalmente, mesmo em povos que estavam isolados de outras civilizações. Portanto, há uma inversão de valores, pois traço cultural isolado é o nosso tempo não dar a Deus - ou ao inconsciente e transcendente, se preferir - a sua devida importância. Em momentos de perdas, viver o “luto psíquico” é necessário, desde que não constitua depressão patológica. Isso sugere maior interiorização, um aprendizado com a tristeza, como se buscássemos no mais profundo de nosso interior as forças para continuar seguindo em frente. Não é por acaso, uma vez que é nesse processo - bastante subjetivo - que muitas vezes prestamos mais atenção aos sonhos, buscamos um sentido maior para a vida e reforçamos os nossos fundamentos espirituais, independente de nossa fé. Quanto às frustrações, penso que é preciso distingui-las das grandes perdas. Elas em geral são duras, mas positivas, pois nos conscientizam de nossas expectativas irreais. Só pode se frustrar aquele que esperava de algo ou alguém, aquilo que este algo não podia lhe dar. Desilusão é sair de uma ilusão, e por mais que isso doa, não deixa de ser algo maravilhoso para a nossa evolução. E se é um momento de dor e evolução, nada melhor do que nos ancorarmos em Deus. Bem-Estar - Qual o melhor meio de lidar com as dúvidas, incertezas e inseguranças diante do futuro, ainda que se parta do princípio que nada acontece por acaso? Freire - Costumo dizer aos meus pacientes que a depressão é a doença do passado e a ansiedade é a doença do futuro. Só se vive no aqui-agora e qualquer espiritualidade que tenhamos precisa ser exercida no cotidiano, aqui mesmo, nesse plano e momento, com as pessoas com quem convivemos. Ainda bem que temos incertezas em relação ao futuro. Isso significa que ainda temos escolhas a fazer, o que em outras palavras implica estarmos vivos. Se temos dois caminhos, isso implica, naturalmente, dúvidas, e aí sim pode ser importante prestarmos atenção aos sinais, e compreendermos os significados simbólicos de nossas escolhas. Mas se as incertezas são a única "certeza" que temos, e as dúvidas naturais, isso não significa que precisemos ter insegurança. O verdadeiro "segredo", a meu ver, é ser capaz de viver o presente e escolhermos nossos caminhos naturalmente, com o maior grau de consciência que nos for possível para aquele momento. Consequências sempre existirão, mas todo caminho trará sua recompensa. Se, por outro lado, ficamos apreensivos com o futuro, a ponto de ficarmos inseguros, significa novamente que estamos vivendo mais o futuro do que o presente. Isso é ansiedade. Mas você poderia me dizer que, ao chegarmos ao futuro, poderemos olhar para trás e nos arrepender de nossas escolhas, mas neste caso novamente estaríamos vivendo o passado, e isso é depressão. Não me arrependo das escolhas que fiz há 10 anos, mas não faria novamente algumas delas se tivesse a consciência que tenho hoje. Não há nada de errado nisso, pois era feliz naquele tempo com aquelas escolhas e o ser diferente que sou hoje também é fruto delas. Só se vive no presente, e na maioria das vezes, o caminho é muito mais importante do que o destino. Bem-Estar - Qual a relação entre fé; livre-arbítrio e a lei da ação e reação? Por que a maioria das pessoas não tem consciência da ligação entre esses pontos? Freire - Antes de mais nada, ação e reação é uma lei natural, como a gravidade e independe de nossa consciência. O mundo simplesmente é assim, independentemente de levarmos mais ou menos tempo para perceber. Quem joga uma pedra para cima sabe que ela cairá logo depois, e aquele que semeia o mal, mais cedo ou mais tarde colhe as consequências. Não vejo castigo divino nisso, é apenas "natureza", assim como a chuva ou o sol. Se sei para onde a correnteza corre, posso nadar melhor e evitar riscos desnecessários. Quanto ao livre-arbítrio, como disse, está sempre presente em nossas escolhas, embora eu pense que ele também é limitado às criações pessoais, coletivas e divinas. Não tenho liberdade total, mas tenho bastante. Não posso sair voando pela janela, não tenho como comprar determinadas coisas e as leis e a ética também colocam limites nas minhas atitudes. Mas tenho poder de escolha, tenho liberdade de pensamento, e tenho ainda assim infinitas possibilidades de realização. Quanto à fé, pode se dar em dois níveis: o da simples crença, que é importante, e o da experiência interior, da certeza da presença divina, que é completamente diferente de simplesmente “acreditar” racionalmente em algo maior. Eu diria que, partindo da fé, observando os sinais, exercendo nosso livre-arbítrio consciente de suas potencialidades e limitações e sendo responsáveis com nossas ações e suas reações, podemos construir o nosso caminho de autorrealização, que via de regra costuma conduzir a uma experiência direta e intransferível de Deus. Bem-Estar - Os eventos não premeditados sempre têm um porquê de ocorrer? É possível aprender sem se condenar, sem se estressar nem se cobrar demais? Freire - Creio pessoalmente que a realidade seja um grande laboratório de criação coletiva. Nesse caso, em algum grau eu concordo que tudo tem o seu porque, e até mesmo que tudo seja "natural", embora a maioria das coisas seja de uma "natureza" que nos escapa à compreensão. E está exatamente nisso o segredo de não nos estressarmos ou nos cobrarmos demais, afinal, não somos oniscientes e onipresentes, e não precisamos “compreender” o motivo de tudo aquilo que nos acontece. As camadas seriam infinitas e as relações incomensuráveis. Uma pessoa que nos detém e pergunta as horas afeta se encontraremos ou não uma pessoa mais tarde, e não há nada demais em admitirmos nossas limitações mentais e simplesmente vivermos o presente, no aqui e agora, assumindo apenas a nossa responsabilidade por nossas escolhas, e as fazendo dentro dos princípios da ética e da evolução. Não é pouca coisa, e a colheita se dará de acordo com o que plantarmos. Estresse é uma variação da ansiedade, autocobrança é variação da culpa que nos leva à depressão, e, como disse, essas são doenças de quem vive o futuro ou o passado, respectivamente. Planejar o futuro e ser responsável com o passado é uma coisa, deixar de viver o presente é outra bastante diferente. Bem-Estar - Como lidar com as estatísticas e fatos do dia a dia, principalmente diante de tanta violência e ainda considerar que todos os ‘males’ não estão ocorrendo por acaso? Freire - Bem, a violência também não ocorre por acaso, ela é fruto da vontade de alguém, e também é reflexo de todo um contexto social. Além disso, há a questão da causa e consequência. Reclamamos da má qualidade da produção cultural, mas compramos discos piratas, que muitas vezes alimentam também a indústria do crime e da contravenção. Queremos empregos, mas preferimos comprar um contrabando de qualidade duvidosa. Muitos de nós temos violentos preconceitos com raças, povos e classes sociais, e estranhamos quando sofremos alguma outra forma de violência ou discriminação. Muitas mulheres que condenam a prostituição às vezes mantêm-se em casamentos insatisfatórios e sem amor apenas para manter determinado padrão para si ou para seus filhos. O jovem que pede paz em passeatas às vezes é o mesmo que fuma um “baseado” que financia o narcotráfico. Quem compra peças de desmanches “paralelos” para seu carro muitas vezes faz disparar mais uma encomenda de roubo de veículo similar para repor o estoque - por ironia, pode ser que o seu próprio é que seja roubado, mas se for o do vizinho, "tudo bem". Além do mais, a vida nos trata como a tratamos. Não importam tanto os exemplos, e sim as regras. Se quando vejo um veículo prestes a estacionar no supermercado eu me aproveito de sua indecisão e entro com meu carro na vaga que seria do outro, acabei de assinar um contrato com a vida dizendo que, no mundo que eu estou cocriando, vale alguém se aproveitar do descuido do outro para tomar vantagem daquilo que o outro não vê. Aí se na semana seguinte um colega de trabalho roubar uma idéia nossa, ou usar um artifício de autopromoção que acarrete a minha demissão, não vale eu chorar reclamando para Deus que foi injusto, que tenho três filhos para criar ou algo assim. Provavelmente, mal irei me lembrar que este “movimento” de peças no tabuleiro da vida fui eu mesmo quem validei, no estacionamento do qual já me esqueci. Por este princípio, o fato de cocriarmos violência em nosso mundo me parece diretamente proporcional às várias violências que fazemos com nossos semelhantes, com a ética, com os princípios de cidadania, e principalmente contra nós mesmos. Se podemos levar vantagem antiética - no trânsito, no imposto de renda, na empresa - porque é que achamos tão ruim quando um assaltante usa também de seus recursos para levar a sua vantagem? Não somos nós os patrocinadores de suas ações? Bem-Estar - Qual deve ser o ‘esforço’ ou prática exercitada para obter mais conhecimento e evolução espiritual? Freire - Como tentei dar a entender em outras questões, compreendo a espiritualidade como um exercício do cotidiano, exercitado no aqui-agora e não apenas uma série de cultos ou crenças em alguma instância distante. Deus está nos confins do universo infinito, mas é mais próximo buscá-lo dentro de nossos próprios corações, onde Ele também reside. Vem daí um equívoco comum, o de viver a suposta “espiritualidade” do lado de lá, esquecendo-se da vida aqui. Ora, se viver apenas o consciente e material é a definição de neurose, abrir mão dele para se ancorar só no inconsciente e intangível seria a própria psicose. Espiritualidade, em minha opinião, é um processo de equilíbrio entre essas duas realidades - consciente e inconsciente, objetivo e subjetivo - aplicado ao que vivemos aqui. Uma boa prática, na minha opinião, é empreender algum caminho de autoconhecimento - psicoterapia séria, meditação, religiosidade sadia - que possa ser convertido em atitudes melhores e mais éticas em nossas esferas de atuação. Conhecimento é importantíssimo, mas é mais consequência do que substituto. E além do mais, conhecimento não é o mesmo que sabedoria, aquilo que obtemos quando, a partir de nossas escolhas, acumulamos experiência de vida e aliamos a razão ao coração. Bem-Estar - Entretanto, ao contrário do que você propõe, as técnicas de best-sellers visam mais o futuro. Quais as causas e consequências dessa tendência? Ótimo ponto. Muitos compram equivocadamente essa idéia - e compram literalmente - de que "O Segredo" para decobrirmos "Quem Somos Nós" é negarmos nosso presente, e a historicidade que nos constituiu. Observe que, na maioria das vezes, o que propõem em seu "método é sempre criar uma ilusão futura distante de sua realidade (estruturas de ansiedade, mania e fantasia), repetir o desejo ao infinito em pensamentos e ritos (característica da obsessão e compulsão), perder o senso de realidade e exequibilidade (ídem, psicose), abandonar a noção de culpa e responsabilidade (psicopatia e sociopatia) - para, a seguir, por cansaço, o antigo crédulo ser confrontado pela realidade, pela própria falta de autoanálise e de atitude ou pelas lei universais de causa-consequência. Então, o antigo "mago" que não se conheceu cai em uma nova e mais intensa depressão, desta vez fabricada, da qual provavelmente só sairá no próximo best-seller, palestra "motivacional", overdose de Prozac ou terapia "alternativa" mágica que encontrar - o que apenas reiniciará todo o processo, em escala maior. Essa oscilação quase psicótica entre fases maníacas e depressivas tem nome, "transtorno bipolar", e estima-se que já atinja 10% da população ocidental baseada em nosso estilo neurótico de vida. Por isso, costumo dizer que certos discursos motivacionais - filmes, livros, palestrantes, terapeutas "alternativos" - são capazes de fabricar um bipolar em pouquíssimo tempo - e, pior, com o sujeito se sentindo "ótimo". Me parece óbvio, perigoso, e cada vez mais recorrente, financiados pela nossa ansiedade em adquirir logo nossa felicidade fast-food, antes que nosso sonho eterno torne-se obsoleto pelos lançamentos de Desejos 2.0 da próxima estação. Com tanto "mercado consumidor" para a felicidade, eu deveria abrir uma franquia. (risos) Bem-Estar - Qual a solução, se muitos são infelizes até mesmo quando conseguem realizar seus desejos? Por trás de cada desejo material, há sempre um meta-objetivo intangível. As pessoas não querem "dinheiro" ou "carro", em último grau elas anseiam "segurança", "liberdade", "amor". Portanto é irônico se tornarem, nessa busca, mais inseguras, escravas da carreira e pouco atentas a seus amores. Outras pediram "casa", mas desejavam ali "família" e "tranquilidade". Infelizmente conheci inúmeros casais que se separaram pouco após conseguirem comprar, mobiliar ou reformar a "casa de seus sonhos". Enfatizo: inúmeros. Poderia dar outros exemplos, mas sempre há algo intangível e subjetivo atrás de qualquer desejo ou prazer material. Mas vivemos em uma sociedade que cultiva o desejo e estagnação dos meios objetivos, ao mesmo tempo em que despreza os fins imateriais. Me parece óbvio que isso gerará problema e frustação, não? Para o povo grego, aquele que vivia para realizar seus desejos, inclusive materiais, era de natureza concuspicente, e portanto, um escravo. Liberdade era sair de casa, participar da pólis, contemplar o belo, ter olhos para buscar a sabedoria. Animais e escravos é que, limitados aos prazeres sensoriais e necessidade de sobrevivência, viviam para a satisfação dos desejos. Dá o que pensar sobre nossa "liberdade" de "chegar lá" em uma sociedade orientada a consumos e desejos, onde a filosofia, a espiritualidade e o autoconhecimento dão lugares a best-sellers como "O Segredo". Os gregos tem nisso alguma razão. Animais acordam, comem, bebem, se reproduzem, desejam, marcam território, deitam no espaço mais confortável disponível, depois dormem, repetindo o ciclo até morrer. Não há abstração, não há subjetivo, não há um sentido maior. A maioria das pessoas "de sucesso" que aspiramos vir a ser fazem apenas o mesmo, embora com algum pedigree. Nunca, em toda história da humanidade, precisamos tanto de filosofia e de sentido como nos tempos de hoje; mas ironicamente esta própria ausência faz com que, peixes que não percebem a água do oceano, valorizemos o imediatismo da situação oposta. Tratei recentemente de uma socialite que havia realizado todos seus desejos, inclusive financeiros e "românticos", mas que para isso sacrificou seus valores, suas origens, e aqueles que mais amou. Hoje vive infeliz e sem sentido, luxuosamente imersa em vazios, fobias e culpas, e chorando ao perceber não conseguir sequer interagir ou merecer o amor e recursos que hoje tem, vindos mais de desejos complexos do que da simplicidade do coração. Um inferno em contos de fadas. Foi um caso clínico didático e desesperador, daqueles que nos deixam com uma pulga na orelha em relação ao que estamos cocriando com nossos desejos e existência. Bem-Estar - Gostaria de deixar uma palavra final? Apesar de nossa conversa despretensiosa, o assunto é crítico, e sei da responsabilidade que tenho em matérias assim, que em última análise tocam nos desejos e vida que cada leitor constituirá. Espero que o compartilhar dessas experiências e reflexões lhes permitam repensar um futuro melhor, ou pelo menos estarem mais atentos ao presente, o que no fim dá na mesma. Se consegui, deixem-me saber. Desejo sinceramente que os leitores que compreenderam a gravidade do que tentei expressar consigam realizar e cocriar quase tudo o que desejam - para que nunca percam a alegria da conquista, nem a consciência e transcendência de seus limites e menos ainda a valorização do muito que já tem.
-- Lázaro Freire lazarofreire@voadores.com.br
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